A ialorixá e líder quilombola Bernadete Pacífico foi morta a mando de um líder do tráfico de drogas na região do Quilombo Pitanga dos Palmares, em Simões Filho, na Região Metropolitana de Salvador. A conclusão foi feita pela Polícia Civil da Bahia, que divulgou a informação em entrevista coletiva, nesta quinta-feira (16), em Salvador, às vésperas do crime completar três meses.
Mais cedo, o Ministério Público da Bahia (MP-BA) divulgou que seis pessoas foram indiciadas, cinco pelo assassinato de Mãe Bernadete, e um sexto por posse ilegal de arma de fogo, em outro inquérito policial. O crime ocorreu na noite de 17 de agosto deste ano, na sede do Quilombo Pitanga dos Palmares. [Relembre o crime ao final da matéria]
O g1 apurou que os acusados do crime integram a facção criminosa denominada de Bonde do Maluco. “É claro para a equipe de investigação de que a líder quilombola era legitimada pela comunidade, tinha liderança forte pelos interesses do quilombolas, e quando sua liderança se contrapôs aos interesses do tráfico na região, ela pagou com a própria vida”, disse a delegada Andréa Ribeiro, do Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP), responsável pelas investigações do crime.
O passo a passo do crime
Mãe Bernadete X exploração ilegal: De acordo com a Polícia Civil, a motivação do crime teve início com a insatisfação de um morador do quilombo, identificado como Sérgio Ferreira de Jesus, de 45 anos. Ele foi reprimido por Mãe Bernadete por conta da exploração ilegal de madeira praticada por ele na região. O homem instigou o crime e auxiliou os executores na ação delituosa.
Mãe Bernadete x tráfico de drogas: antes de ser morta a tiros, Mãe Bernadete teve uma discussão acalorada com Ydney Carlos dos Santos de Jesus, o ‘Café’, dono de uma barraca chamada Pitanga Point, que realizava festas para comércio de drogas na região. Mãe Bernadete se opôs a essa situação.
Os áudios: Sérgio Ferreira de Jesus enviou mensagens de áudios a um parente de Josevan Dionísio dos Santos, que faz o áudio chegar aos líderes do tráfico na região, Marílio dos Santos, o ‘Maquinista’, e Ydney Carlos dos Santos de Jesus, o ‘Café’.
“Alisson, fiquei sabendo aqui dentro do quilombo que Bernadete falou que no dia da festa vai cercar tudo de polícia, vai pegar todo mundo aí. Ela tá mandando um carro preto aí cheio de polícia pra tirar fotos das barracas. Tudo é policial civil, diz que vai pegar vocês tudo de surpresa. Ela disse que vai dar risada quando todo mundo estiver na cadeia. Você fique ligado aí, ó. Avisa ao Café que ela que está mandando os policiais aí. Fique ligado nos carros pretos, que é polícia, e vai pegar vocês tudo na moita” (sic), diz Sérgio no áudio.
A ordem para matar: Após receber as informações de Sérgio Ferreira de Jesus, os líderes do tráfico na região, Marílio dos Santos, o ‘Maquinista’, e Ydney Carlos dos Santos de Jesus, o ‘Café’ ordenam a morte de Mãe Bernadete.
O crime: Na noite de 17 de agosto, Sérgio Ferreira de Jesus auxilia Josevan Dionísio dos Santos e Arielson da Conceição Santos e indica à dupla a melhor rota para o crime. Mãe Bernadete foi morta com 25 tiros. O primeiro tiro foi dado após a líder quilombola se negar a se sentar no sofá.
Novos áudios após a execução: Após matar Mãe Bernadete, Josevan Dionísio dos Santos e Arielson da Conceição Santos levaram os celulares da líder quilombola e de seus netos. Sérgio Ferreira de Jesus envia um novo áudio para traficantes e pede que os celulares sejam descartados.
“O celular que você levou aí, tira a bateria, enterra o celular que está com o rastreador da (Polícia) Federal. Esconde bem escondido, arranca o chip e desliga o celular. Enterra essa peste, viu, que já está com rastreador um aí que você levou. O dela está com o rastreador”, diz.
O inquérito
De acordo com as investigações, dois executores, dois mandantes, um partícipe e um sexto envolvido, que guardou as armas utilizadas no crime e que deu apoio na fuga de um dos atiradores, foram identificados como responsáveis pelo crime. Os cinco primeiros foram indiciados por homicídio e o sexto por posse ilegal de arma de fogo, em outro inquérito policial.
De acordo com MP-BA, os cinco são acusados de homicídio qualificado por motivo torpe, de forma cruel, com uso de arma de fogo e sem chance de defesa da vítima. Para o órgão, Mãe Bernadete morreu por que lutava contra o tráfico de drogas.
“Isso está fartamente comprovado na investigação por testemunhas, áudios de telefones apreendidos, intercepções telefônicas. As duas armas de fogo periciadas e o exame de balística comprovou que os 25 disparos saíram daquelas armas”.
Ainda segundo a Polícia Civil, há outros inquéritos em curso apurando tráfico de drogas e conflitos fundiários na região do quilombo em Simões Filho.
Quem é quem na execução de Mãe Bernadete. Vídeo:
Executores:
Josevan Dionísio dos Santos (foragido – tem mandados de prisão em aberto por homicídio e por fugir do sistema prisional. Tem atuação no tráfico de drogas): autor dos disparos contra Mãe Bernadete.
Arielson da Conceição Santos (preso no dia 1º de setembro em Araçás): autor dos disparos contra Mãe Bernadete.
Instigador do crime:
Sérgio Ferreira de Jesus, 45 anos (preso): instigou o homicídio e acionou os traficantes. Tinha se desentendido com Mãe Bernadete por conta da extração de madeira ilegal. Enviou áudios para traficantes instigando uma ação contra a líder quilombola.
Mandantes:
Marílio dos Santos, o ‘Maquinista’ (foragido): 34 anos, segundo mandante, tem mandato em aberto por homicídio. Foi preso em 2018, alvo de operação Tarja Preta da PF e comandava o tráfico na região.
Ydney Carlos dos Santos de Jesus, o ‘Café’ (foragido): 28 anos, tinha barraca na área do quilombo para festas e comércio de drogas. Discutiu com Mãe Bernadete que se opôs ao tráfico na região.
Indiciado em um segundo inquérito:
Carlos ‘Gyodai’: preso por guardar as armas do crime e ter dado fuga a Arielson da Conceição Santos. Dos cinco suspeitos, dois já tinham sido presos em setembro. Os outros três ainda não foram detidos. O indiciado por guardar as armas também está preso.
A família da ialorixá contratou peritos particulares no início deste mês e cobrou celeridade da polícia. As investigações são acompanhadas por integrantes dos conselhos nacionais de Justiça e do Ministério Público. Dois dias após o crime, o CNJ enviou dois magistrados à Bahia para acompanhar as ações.
Mãe Bernadete fazia parte do Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos (PPDDH) do Governo Federal. A sede do quilombo Pitanga dos Palmares, onde ela vivia, era monitorada por câmeras de segurança. Apesar disso, três das sete não estavam funcionando, por falta de recursos.
No dia do crime, Mãe Bernadete estava dentro de casa, com os netos, quando ouviu batidas na porta. Quando os dois suspeitos entraram na casa da vítima, ela pensou que se tratava de um assalto. A informação foi dada à polícia pelo neto da vítima, Wellington Gabriel de Jesus dos Santos, que estava na casa da avó na noite do ataque.
Ainda segundo Wellington, os homens pegaram o celular da avó e a mandaram desbloquear o aparelho. Eles também roubaram os celulares dos dois adolescentes que estavam na sala e exigiram que eles fossem para um dos quartos da casa.
Quilombo Pitanga dos Palmares é lar de quase 300 famílias e tem histórico de conflitos fundiários, diz Governo da Bahia. Depois disso, um dos homens foi até o quarto onde Wellington estava e o mandou deitar no chão. “Deite no chão, seu ‘viado'”, exigiu. Ao sair do cômodo, o homem fechou a porta. O jovem, então, ouviu diversos disparos e ao sair do cômodo, encontrou a avó morta no chão da sala.
Sem telefone, Wellington utilizou o aplicativo de mensagens que estava aberto em seu computador para pedir socorro para pessoas que vivem no quilombo, deixou os familiares adolescentes com um vizinho e foi até o terreiro de candomblé, que fica em Pitanga dos Palmares, para ligar para a polícia.
Parentes da vítima saíram do quilombo e vivem sob escolta da Polícia Militar. Advogados que representam a família de Mãe Bernadete também relataram ter recebido ameaças.
Medo e ameaças
Familiares relataram que Mãe Bernadete sofria ameaças há pelo menos dois meses. Ela falou sobre isso durante um encontro com a presidente do Supremo Tribunal Federal, Rosa Weber, em julho deste ano.
À polícia, Wellington relatou que não se lembra de ver a avó ser ameaçada, nem dela ter inimizades. Apesar disso, o jovem contou que Mãe Bernadete passou a ter “muitos medos” após a morte de Flávio Gabriel Pacifico dos Santos, conhecido como “Binho do Quilombo”, em 2017. Binho era filho de Bernadete e pai de Wellington.
“O inquérito está em sigilo até para família. Não resolveram o caso de Binho, e não vou permitir que o de minha mãe fique na mesma situação”, desabafou Jurandir Wellington, filho de Bernadete.
Ele agora está com a tutela dos três sobrinhos, filhos de Binho do Quilombo – liderança quilombola e filho de Bernadete, que foi assassinado em 2017, dentro do quilombo. Seis anos após o crime, ninguém foi preso. As informações são do g1.