A Cannabis na Medicina vai muito mais além do THC e do CBD. Embora a maioria das investigações tenha como foco essas duas substâncias, as que são mais abundantes na planta, uma recente revisão da literatura científica exalta a interação complexa entre os fitocanabinoides e nosso corpo, indicando uma nova era de tratamentos para a saúde.
O artigo Phytocannabinoids: Exploring Pharmacological Profiles and Their Impact on Therapeutical Use traz informações que confirmam a célebre frase do neurocientista Sidarta Ribeiro. O autor do livro As Flores do Bem costuma dizer em suas entrevistas que “a Cannabis está para a Medicina do século 21 assim como os antibióticos estão para o século 20”.
A análise, realizada na Romênia e publicada no periódico International Journal of Molecular Sciences, reforça a necessidade de que a pesquisa científica siga se aprofundando no tema para aproveitarmos todo o potencial terapêutico dos derivados da Cannabis.
Uma farmacopeia vinda de uma planta
Recentemente, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) abriu uma consulta pública para ouvir a população sobre a inclusão da Cannabis na Farmacopeia Brasileira, reconhecendo que a planta possui propriedades terapêuticas valiosas para a Medicina.
No entanto, o estudo romeno vai mais além, defendendo o argumento de que a planta e seus derivados são praticamente uma farmacopeia inteira.
A possibilidade de a Cannabis contribuir no tratamento de dezenas de condições de saúde vem da sua interação com o sistema endocanabinoide (SEC). Esse é um complexo sistema de sinalização a nível celular e que tem o papel de regular diversas funções fisiológicas, incluindo humor, apetite, sistema imunológico e padrões de sono.
Além disso, nessa interação com o SEC, a planta possui um efeito denominado “efeito entourage”, no qual a ação combinada dos fitocanabinoides, terpenos, flavonoides e outros compostos da planta é superior à soma das suas ações separadas.
É necessário reconhecer que a medicina ocidental tem apego aos compostos isolados e os resultados do estudo apontam que as interações podem ajudar muita gente a ter mais bem-estar e qualidade de vida.
Vamos destacar as principais observações que os cientistas reuniram após analisar mais de 100 trabalhos científicos.
Os canabinoides “maiores”
A análise começa destacando os canabinoides mais influentes e predominantes na planta Cannabis. São chamados de canabinoides maiores por estarem presentes em maiores quantidades se comparados a outras substâncias, por isso são os principais alvos de estudos científicos.
Fazendo uma comparação entre os compostos da planta com uma orquestra, os canabinoides maiores seriam os solistas. O canabidiol (CBD), delta-9-tetrahidrocanabinol (THC) e o canabigerol (CBG) entraram nessa classificação.
THC
O THC seria o principal componente psicoativo da Cannabis, conhecido pela capacidade de alterar a percepção e humor, além de ser eficiente contra dores, vômitos e enjoos. É classificado como uma substância controlada em muitos países apesar de seu potencial terapêutico.
Apesar de ser geralmente associado ao uso problemático da Cannabis, o THC tem risco de dependência menor do que outras drogas como o álcool e a nicotina. Interagindo diretamente com o receptor CB1 do SEC, desencadeia uma série de processos fisiológicos que são úteis no manejo de diversas condições de saúde.
CBD
Ficou demonstrado que o CBD é útil no tratamento de várias formas de epilepsia, inclusive as resistentes aos tratamentos convencionais. Além disso, também é eficaz contra alguns tipos de dor, ansiedade, depressão, doenças inflamatórias e o repertório está se ampliando à medida que as pesquisas avançam.
O CBD interage com o SEC de forma diferente do THC, influenciando também outros sistemas, como o serotoninérgico. O canabidiol não está associado a abuso ou dependência da planta e pode até mesmo ser útil na recuperação de pessoas com dependência ou uso abusivo de substâncias.
CBG
Muitas análises consideram o CBG um canabinoide menor pela quantidade encontrada nas plantas de Cannabis. Porém o canabigerol é um precursor de outros canabinoides e também possui propriedades medicinais relevantes. Ele interage com os receptores CB1 e CB2 do SEC com menos afinidade se comparado ao CBD e ao THC. Estudos indicaram que esse canabinoide pode influenciar a atividade de outros canabinoides, inclusive os endógenos.
Desse modo, é útil para tratar doenças inflamatórias, estimular o apetite e alguns estudos pré-clínicos indicam um poder antitumoral do CBG.
Os canabinoides “menores”
Na mesma comparação entre os compostos da Cannabis e uma orquestra, os canabinoides menores seriam os outros instrumentos que não são solistas, porém sua contribuição é fundamental para o “efeito entourage”.
Esses compostos eram pouco conhecidos ou desconhecidos até pouco tempo e têm potencial para transformar a prática da Medicina assim como os canabinoides maiores. Há um grande espectro de canabinoides menores a serem explorados, vamos destacar três deles: canabinol (CBN), canabicromeno (CBC) e tetrahidrocanabivarina (THCV).
CBN
O CBN tem origem na degradação do THC pela exposição à luz solar ou ao oxigênio. É um agonista parcial dos receptores CB1, com uma ligação mais fraca do que o delta-9. Assim, os efeitos psicoativos do canabinol são em geral mais leves.
Os efeitos do CBN são úteis para lidar com distúrbios do sono e doenças neurológicas.
CBC
O CBC inibe a ativação de certas vias inflamatórias e citocinas, contribuindo para o alívio da dor e da recuperação de pacientes com condições que afetam o sistema nervoso central.
THCV
O THCV tem maior afinidade com os receptores CB2 em comparação com o CB1. Dependendo da dose e da presença de outros canabinoides, os efeitos da tetrahidrocanabivarina podem variar. Em doses mais baixas é um antagonista do CB1, em doses mais altas pode atuar como agonista.
Esse composto tem potencial para contribuir na perda de peso e controle glicêmico de pessoas com diabetes.
As aplicações terapêuticas da Cannabis na Medicina
Com todos esses componentes vindo da mesma planta, é a combinação entre eles que tem o potencial para transformar a prática da Medicina. Com o avanço das pesquisas, vamos conseguir entender qual a combinação ideal para lidar com cada condição de saúde. Nesse sentido, as principais propriedades terapêuticas da planta são:
Anti-inflamatória;
Antioxidante;
Analgésica;
Neuroprotetora;
Ansiolítica.
Há outras propriedades que ainda estão sendo analisadas. Portanto, não há protocolos clínicos e precisamos aguardar por mais resultados para aproveitarmos essas propriedades.
Antitumoral;
Cicatrização de feridas;
Antimicroorganismos.
Aliança entre Medicina e Cannabis
A pesquisa faz parte de um campo crescente da investigação científica sobre o “efeito entourage” da Cannabis. Mencionamos um estudo de 2023 que notou que um produto com CBD e terpenos típicos da variedade OG Kush melhoraram as interações sociais de crianças com transtorno do espectro autista.
Outro exemplo é que a combinação de CBD com THC em proporções iguais é mais eficiente para aliviar a dor do que os compostos isolados. As informações são do site Caderno Baiano.