Há um ano, o quinto menor município da Bahia, localizado na região turística da Chapada Diamantina, enfrentou a maior tragédia da sua história. Na noite de 7 de dezembro de 2013, os 4.500 habitantes da pequena Lajedinho foram surpreendidos por um temporal arrasador. Em duas horas, segundo a Defesa Civil, a localidade recebeu o volume de chuva que era esperado para três meses. O canal que corta a cidade não suportou a força da natureza, transbordou e alagou parte baixa do município. A enxurrada decorrente da chuva provocou a morte de 17 pessoas – dentre idosos, adultos e crianças -, e deixou 600 moradores desabrigados. A tragédia chamou a atenção do país para as perdas e prejuízos que tomaram conta da região.
Um ano após o desastre, as marcas da tragédia ainda são visíveis em cada rua do município. Onde ficavam casas, escolas e prédios públicos, hoje existe apenas terra. As ruínas restantes foram integradas à rotina dos moradores. Diante da tristeza, a população espera se reerguer. Bloco e cimento chegam aos montes na região, que a partir de recursos do Ministério das Cidades, começa a se levantar. O sonho das novas moradias, entretanto, não é capaz de dissipar a tristeza daqueles que, durante 365 noites até aqui, deitaram a cabeça no travesseiro com a lembrança e saudade dos familiares mortos.
Dor da Perda
O professor Jeferson Silva teve o carro arremessado contra a garagem com a força da chuvas. Um ano após a tragédia, ele relata que recuperou e vendeu o veículo, que agora faz parte do passado. De toda a tragédia, entretanto, ele afirma que ainda não consegue entender como se mantém de pé depois de ver tantos familiares mortos. Ao todo foram nove. “[Parentes] todos próximos, principalmente minha mãe, três irmãos, uma cunhada, um sobrinho e três primos. É muito forte você perder a sua família praticamente toda e ainda estar de pé”, constatou emocionado.
Jeferson não enfrenta essa dor sozinho. O casal Carlos e Arlinda Pereira ainda revelam por meio das lágrimas a dor de ter perdido a filha Carolina Pereira, de 11 anos. À época, o pai contou aos prantos o sofrimento de não ter conseguido alcançar a menina antes da arrasadora enxurrada. “Ligou [dizendo]: painho, venha aqui que está entrando água aqui em casa. Quando desci, não deu mais tempo. Cheguei ali na ponte, faltou energia. Não consegui ter contato com ela mais, só tive contato com vizinho. Ô Regi [o vizinho], pega a minha a minha filha e coloca no telhado. Aí, depois, fui perdendo contato com todo mundo. Só vi gente descendo e eu chorando ao ver minha filha morrer”.
Um ano depois, ele diz que a dor é mesma. A esposa, do mesmo modo, revela que é tomada por lembranças diárias da pequena Carolina. “Não tem um momento que eu esqueça. Não, [a lembrança] fica me machucando o tempo todo e me machucando, machucando. Às vezes, saio daqui às 18h e fico olhando para as estrelas, eu falo: meu Deus, cadê a minha filha?”. Dona Arlinda explica que a força para seguir em frente vem da filha menor, Cecília Pereira, de 3 anos de idade, que também é uma sobrevivente da tragédia de Lajedinho. “Quando eu acordo pela manhã e vejo essa criança, eu digo: ela precisa de mim a qualquer momento. Para tudo ela precisa de mim”, desabafou.
Hoje, Carlos Pereira, pai de Carolina, também se dedica à criação da filha Cecília, mas a saudade de Carolina parece não ter cura. “A minha filha [Carolina] é tudo na minha vida. Ave Maria, [saudades] dela, da minha sogra, do meu cunhado. Todos os três. Só quem passa é quem sabe”, diz. Assim como casal Arlinda e Carlos, o pedreiro Antônio de Jesus também teve que aprender a lidar com a dor da perda. Servidor do cemitério local, ele viu a mãe e três sobrinhos serem enterrados. Todos os dias, a terra em que trabalha traz à tona a lembrança de um dia que nunca será esquecido.
“Quando a gente está em casa, a lembrança vem. A gente pensa que a pessoa está viajando, mas não está. A gente brinca, dá risada para tentar esquecer, mas não esquece não”, afirma. Dona Alexandrina Ferreira também tenta lidar com a saudade da filha, que foi arrastada pela chuva durante o temporal. “Vem aquela tristeza quando vem meia-noite, a hora de dormir, só pensando como aconteceu aquele negócio. Espera ela parecer e nada”, contou. As netas Lorrane e Lisandra Ferreira, que têm respectivamente 12 e 6 anos, são lembranças vivas da menina que criou com muito amor.
“Nesses dias que eu estava no quarto, que eu fui dormir, eu não sei o que foi, que eu vi ela [a mãe] na minha frente, de repente. De tanto pensar nela, ela apareceu”, disse em lágrimas a jovem Lorrane, que tão cedo teve que lidar com a morte da mãe.
Sobreviventes
O encarregado de obras Antônio Sena perdeu a casa onde morava com a mulher e os filhos, mas conseguiu resgatar a família pelo telhado. O pedreiro continua morando em casa de aluguel, que é pago pela prefeitura. Outras 59 famílias também recebem o benefício. Apesar de não ter perdido a família, Antônio Sena ressalta que perdeu muitos amigos. “Nunca vou esquecer nenhum deles. Ele vão sempre estar na minha memória, como se estivesse sempre vendo. Não vou me esquecer nunca. Ao fim da minha vida, eu vou estar sempre me lembrando”, desabafou.
Outras vítimas guardam histórias da noite trágica. Dona Vera, os filhos e o pai adoentado, de 100 anos, se protegeram da enxurrada dentro de um tanque de água.”A gente conseguiu jogar ele [pai] dentro desse tanque e ele ficou lá três horas dentro da água comigo. Ele me agarrava assim e eu me agarrava com ele”, contou Vera à época. Um ano depois, a filha revela que o pai morreu em agosto deste ano, com problemas cardíacos. A caixa de água, entretanto, lhe garantiu mais uns meses de vida.
A estudante Bruna Macêdo, que também é uma sobrevivente, lembra da aflição sentida no dia do temporal. “Todo mundo na rua pedindo socorro e muito barulho. Caía casa, caía poste, aí ficava aquele barulho. De repente, duas horas da manhã aquietou tudo. Tudo quieto. Aí pensei: meu Deus, o que é que aconteceu. Parece que tava todo mundo morto na cidade”, lembra.
Reconstrução
As marcas da destruição ainda podem ser vistas por todo o município. Os rastros da enxurrada estão nas casas em ruínas, nas rachaduras que desenham as paredes dos imóveis e nas histórias de um povo que ficou marcado por uma tragédia. Sessenta famílias continuam nas casas alugadas pela prefeitura. Quem pôde ficar na própria moradia com autorização da Defesa Civil agora começa a se preparar para a mudança a novos imóveis construídos no município, por meio do Ministério das Cidades. Antes da chuvas, a cidade tinha apenas 470 casas.
Um das pessoas que se prepara para a mudança é o aposentado José Quintino. Aos 94 anos, ele tenta ser forte para deixar para trás o local que guarda suas lembranças da juventude. “Eu vou. O coração vai meio pesado, mas eu vou para a gente ficar seguro”, refletiu. Um ano depois da tragédia de Lajedinho, uma nova cidade está surgindo na parte mais alta do município, longe do risco de novas tragédias. O terreno, que fica logo na entrada da cidade, foi doado às vítimas por um fazendeiro. No espaço, serão construídas 231 casas. As obras foram iniciadas em agosto deste ano e, desde então, 100 já foram erguidas. Os imóveis têm dois quartos, aquecedor solar de água e uma área na parte dos fundos. Conforme a prefeitura, as ruas do conjunto habitacional terão os nomes das vítimas que morreram após as chuvas.
A previsão da prefeitura é de entregar as casas prontas em maio de 2015. Dentre os operários que constroem o novo conjunto estão pessoas que também perderam moradias após as chuvas de 2013. Esse é o caso de Osmar Lima. “Recomeçar o que a gente perdeu. Perdi tudo e agora estou recomeçando a nova vida”, garantiu. Em um outro conjunto habitacional da cidade, as famílias recebem as chaves ainda nesta semana. O projeto da região é mais antigo e começou antes das chuvas do ano passado. Com a tragédia, a prioridade das doações passou a ser das famílias que perderam tudo. Dentre as beneficiadas está a aposentada Antonieta Araújo, de 83 anos. “No natal, eu já quero estar na minha casinha. [Vou] pedir a Jesus Cristo que me dê mais uns anos de vida, não é isso? É tocar para frente”, espera.
As obras em Lajedinho também incluem a reconstrução de prédios públicos, como a sede da Prefeitura, e do Centro de Referência Social, que ficava na área condenada pela Defesa Civil. Os alunos da única escola estadual da cidade, que também foi destruída pela chuva, hoje estudam em um prédio provisório enquanto aguardam a construção de um novo espaço. Até agora, o Governo Federal mandou cerca de R$4 milhões para reconstruir Lajedinho. O que ainda não começou foi a obra de alargamento do canal onde passa o Rio Saracura, local que transbordou após as chuvas, causando a enxurrada.
De acordo com o prefeito da cidade, Antônio Mário Lima, as intervenções no local devem ser iniciadas em 2015. “Acredito que logo no inicio do ano nós estamos com esses recursos liberados para também fazer esse investimento importante, porque vai ter o canal que vai trazer a segurança. O canal vai trazer também a beleza da cidade, porque a parte urbanizada vai ter quadra de esporte, quiosque, academia. Então, vai ter uma série de equipamentos que vai trazer vida para as pessoas dessa cidade”, antecipou.
O comércio da cidade também está sendo reconstruído. Os donos de um dos mercados da região perderam R$500 mil em mercadorias. Um ano depois, eles ainda esperam recuperar o prejuízo financeiro. “De dois a três anos. A nossa base de recuperação é essa. Antes disso, não dá. De mercadoria ao depósito, nós perdemos tudo”, disse o gerente Marcos Silva. Sobrevivente, o aposentado José Quintino, de 94 anos, vê a reconstrução da cidade com orgulho, apesar de não esquecer a dor sofrida com a perda de tantos amigos. Com a sabedoria de quem já viveu mais de nove décadas, ele afirma: “Quem olha para trás, atrás fica. E quem olha para frente vai viajando”.
Matéria extraída na íntegra do Portal G1 Bahia.