A festa de São João cresceu, encorpou e a gradativa substituição do tradicional pé-de-serra pelo forró eletrônico vem sendo acompanhada por uma radical mudança de hábitos. Cada vez mais fora de moda entre os adereços juninos, o figurino chapéu de palha, camisa xadrez e bota de couro cede espaço a ‘mudernidades’ que vão da microsaia ao boné aba reta; licor de jenipapo e o quentão viraram raridades nas prateleiras das barracas enquanto os forrozeiros aderem ao novo trio sertanejo formado por uísque, água de coco e energético, muitas vezes consumidos ao mesmo tempo.
Antecipado em relação ao calendário – que reza a celebração na noite de 23 para 24 de junho, dia em homenagem ao santo e feriado em todo o Nordeste -, o São João de Iraquara, na Chapada Diamantina, expôs a nova tendência na Praça de Eventos logo na abertura do Arraiá do Poço, na noite desta sexta, 17, com as apresentações das bandas 100 Parea, Pé de Ouro e Kasaca de Couro. Em comum, elas apresentaram uma disposição descomunal pra fazer a plateia dançar, o revezamento de dois a quatro vocalistas no palco e o desfile de instrumentos musicais estranhos à tradição forrozeira, como metais, teclados e saxsofone, sem falar nos já manjados contrabaixo e guitarra.
Presente à festa, o prefeito Landualdo de Barros Freitas explica que o Arraiá do Poço é apenas um dos eventos realizados pela administração municipal, e que em Iraquara tem festa junina para todos os públicos. “Na verdade nós resgatamos o tradicional Pé-de-Serra, o Arraiá do Roque, que foi realizado a partir de segunda-feira 13, dia de Santo Antônio, na praça em frente à Caixa Econômica Federal e que agrega mais os adultos e a terceira idade, sem prejuízo da realização desta festa aqui na praça principal, que a gente acaba agradando uma boa parte da juventude”, comparou. “Estamos muito felizes por superar as dificuldades que o País atravessa e conseguir manter Iraquara como referência de São João na Chapada Diamantina, trazendo Bruno & Marrone no domingo”, explica Freitas, referindo-se à dupla sertaneja que será a atração principal do Arraiá do Poço 2016.
Arrasta-pé
A primeira banda da noite, a “100 Parea”, foi apresentada como sendo a melhor do país no estilo vaquejada. “É um verdadeiro estouro de boiada”, definiu o mestre de cerimônias, que ironicamente atende pela alcunha de Dominguinhos, homônimo de um dos maiores cultivadores da tradição deixada pelo Rei do Baião, Luiz Gonzaga. Neste novo arrasta-pé, a sanfona resiste a entrar na lista de espécies ameaçadas de extinção, da qual zabumba e triângulo irremediavelmente já fazem parte. A plateia responde a essa “mudernidade” derrubando tradicionais ícones juninos e promovendo outros. “Licor é pro São João no quintal de casa, ao redor da fogueira. Aqui na muvuca bom mesmo é whysky pra virar a madrugada”, explica Damario Nascimento Nogueira, adepto do visual rapper.
Nadando contra a maré, Manoel de Brito da Silva, 27, resiste ao uso de bonés e não sai de casa sem seus indefectíveis chapéu de palha e camisa quadriculada, “pra resgatar a cultura e a tradição nordestina”, diz. Mas não foge do uísque e do energético. “Cacei quentão por tudo quanto é lado e não encontrei”, garantiu. Na verdade, procurou mal, pois na barraca mais próxima ao palco vende-se tanto uma quanto o outro destilado, com a vantagem que um copo da mistura feita à base de cachaça e gengibre custa R$ 2, enquanto a dose do malte de origem escocesa não sai por menos de R$ 5.
Mas foi uma garrafa ‘do mais puro scoth’ que o vocalista do Pé de Ouro, a segunda banda a se apresentar, recebeu nas mãos de um fã para interpretar uma canção ao melhor estilo dor-de-cotovelo, mesmo tendo perguntado antes se a procedência da bebida era baiana. Contentou-se com a resposta de uma alma espirituosa que lhe assegurou: o precioso líquido era legítimo e procedente de Feira de Santana. Os vendedores ambulantes atestam a mudança de comportamento da massa. Enquanto Fabiano da Silva reclamava que em plena madrugada vendera apenas 10 chapéus, Lauro da Silva Santos, 22 , planeja chegar a 800 unidades de copos de água de coco até o final do expediente. “Uísque a gente sabe que vende pouco porque o pessoal já traz de casa”, resigna-se.
A terceira banda entra no palco, e à despeito do nome Kasaca de Couro, o visual do vocalista trajando chapéu e bota country contrasta frontalmente com o do baixista, que veste touca e calça tênis Adidas. Nesse repertório difícil de reconhecer algo que lembre os preceitos de Mestre Gonzagão, cabe de tudo no palco e na pista de dança, e o exemplo do paroxismo vem de São Paulo, com o jovem casal Dioclécio e Mariane inalando essência de maçã e de amora num narguilé, cachimbo de água oriental utilizado para fumar tabaco aromatizado.
Se a nova música junina é capaz de incorporar o sertanejo e a vaquejada, o axé e o arrocha, o novo visual junino também transgride o velho e trai a tradição, ainda que seja para resgatar o sentido original, a etmologia da palavra forró. Nele cabem todas as tribos, grunges, hastafaris, rappers, pagodeiros, enfim, tantas quantas tribos uma aldeia global é capaz de comportar. De acordo com uma questionável versão da história, a expressão forró derivaria do inglês ‘for all’, uma definição que teria sido dada pelos britânicos que vieram construir nossas ferrovias a um tipo de festa sem qualquer tipo de restrição, aberta ‘para todos’. Seguindo a mais pura tradição jornalística a verdade é que, questionável ou não, se a versão for melhor que os fatos, publique-se a versão. Texto de Aurélio Nunes.