Antônio Pinheiro Salles, 82, mostra as cicatrizes no braço direito e conta como sofreu outras mutilações: Ficou surdo, reconstituiu a mandíbula com platina e perdeu dentes. Preso em Porto Alegre em 1970, ele deixou Goiânia, onde vive, para voltar à capital gaúcha pela primeira vez desde então. O retorno ocorreu no exato dia em que foi levado ao cárcere: 12 de dezembro.
Diante do prédio onde funcionou o Dops (órgão responsável pela repressão e tortura na ditadura militar), hoje sede da Polícia Civil gaúcha, Antônio diz não ter ódio. Mas recorda as torturas ali sofridas sob comando do delegado Pedro Seelig. “Introduziram uma bucha de bombril no meu ânus enquanto estava pendurado no pau de arara.”
Foram nove anos de cárcere, os últimos em São Paulo, onde sofreu tortura comandada por Carlos Alberto Brilhante Ustra, militar elogiado seguidas vezes pelo presidente Jair Bolsonaro. “A impunidade dos torturadores facilita que o herói dele seja o que me torturou da pior maneira possível”, disse. A militância de Pinheiro Salles iniciou no movimento estudantil. Participava de protestos e ações de universitários contra o regime militar e atuou no Polop (Organização Marxista Política Operária).
Após o AI-5, passou a integrar a luta armada, passando pelo POC (Partido Operário Comunista) e, mais tarde, pelo MCR (Movimento Comunista Revolucionário), cujas ações se concentravam no Rio Grande do Sul. Natural de Jordânia (MG), o jornalista viveu e militou também na Bahia. É autor de “1964: Golpe e Ditadura” e “Ninguém Pode Se Calar”.
A seguir, o depoimento dele à Folha:
Sou jornalista e fui preso em 12 de dezembro de 1970, em Porto Alegre. Voltei à capital gaúcha 49 anos depois, em 12 de dezembro de 2019. Quase suspendi a visita na última hora, mas compreendi que era importante. Fiquei nove anos preso, sendo torturado. Depois do Rio Grande do Sul, fui mandado a São Paulo, de onde saí em 1979. Meu sequestro ocorreu durante a tarde, enquanto estava em uma rua do bairro Menino Deus. Fui levado para o antigo Dops, onde hoje funciona a Polícia Civil, que agora revejo. Muita gente passa em frente deste lugar sem saber o que acontecia aqui.
Introduziram uma bucha de bombril no meu ânus enquanto estava pendurado no pau de arara. Junto da bucha, colocaram uma das pontas de um fio usado para dar choque. A outra extremidade do fio enrolaram no meu pênis. O choque é com a chamada “maricota”, instrumento de tortura que gera corrente elétrica com o movimento de uma manivela. A corrente ficava concentrada entre o ânus e o pênis. Quem comandava a tortura do Dops de Porto Alegre era o delegado Pedro Seelig.
A tortura começou ainda do lado de fora. Trouxeram a gente, eu e o engenheiro Luis Carlos Dametto, nos pisoteando dentro da viatura. “Vão virar presunto”, gritavam. Vários outros carros apareceram e ligaram as serenes. Nos arrastaram do carro, nós dois algemados. “Vamos fazer o esquentamento aqui”, disseram. Fizeram uma roda de torturadores com chutes, pancada de cassetete, e nós no meio. Transeuntes pararam para ver, e eles deram tiros para o alto. “São terroristas”, berravam enquanto torturavam.
Eu tinha um relógio muito bom, dado pelo meu pai. A violência quebrou a pulseira. “Meu relógio!”, eu consegui falar. O delegado ficou com o relógio. “É coisa de burguês, capitalista. Você é comunista, não pode ter um relógio desses”, ele disse. Nunca me devolveram. Até o cinto que eu usava quando fui preso vi um torturador usando, o inspetor Nilo Hervelha.
Nos arrastaram até o elevador. Sentaram em cima de nós, dando soco na cara. Paramos em um andar que não sei qual é. O professor Índio Brum Vargas, que já estava preso, conta que me viu chegando arrastado com sangue escorrendo pelo nariz e boca. Separaram a gente, eu e o Dametto, amarraram venda nos olhos e me jogaram em um lugar.
Comecei a escutar os gritos dos torturados. Alguém chegou no meu ouvido e disse: “Fica aí, putão, daqui a pouco chega a tua vez. Com você a gente tem calma, você vai virar presunto depois”. Arrancaram minha roupa e começou a tortura. Em pouco tempo, fiquei sem condições de caminhar. Era arrastado para sair da sala de tortura.
A agressão aos órgãos genitais era uma coisa constante na ditadura. Nas mulheres cortavam os seios com alicates. A mãe de um companheiro ficou com a bexiga e o útero expostos. De uma maneira ou de outra, os órgãos sexuais são recantos privados, ligados à intimidade, vontades pessoais. A agressão direcionada era uma maneira de atacar isso. Tanto que a primeira coisa que faziam era tirar a roupa dos presos.
Em Porto Alegre, além do Dops, passei pelo Presídio Central e pela chamada Ilha do Presídio, a Ilha das Pedras Brancas, no rio Guaíba. Fui também para a cadeia de Jacuí. Depois do Rio Grande do Sul, fui levado para São Paulo. Passei pelo DOI-Codi, onde Carlos Alberto Brilhante Ustra comandava as torturas, inclusive as que sofri lá. As pessoas se referem a mim como um sobrevivente, um mutilado. Me orgulho de ter sobrevivido porque nunca delatei ninguém.
Perdi os dentes. Fiquei com as mandíbulas destruídas, que agora são próteses de platina. Fiquei surdo do ouvido direito e escuto parcialmente do esquerdo. Perdi parte do movimento do braço direito, meu pulso ficou completamente rasgado, passei por cirurgia de reconstrução. Nos últimos anos antes de ser solto, fiquei na prisão da Justiça Militar Federal de São Paulo. Em 1975, elaborei a pauta para desenvolver o documento coletivo que denunciava os nomes de 233 torturadores.
Nas conversas, chamávamos de “bagulho”, para ninguém entender. Os torturadores não eram monstros sádicos, mas pessoas normais que faziam aquilo para o qual foram preparadas pelo Estado para fazer. O documento repercutiu muito. Nossa versão era que o dom Paulo Evaristo Arns levou embaixo da batina após uma visita. Mas não posso afirmar isso. Por mais difíceis que fossem as coisas, contávamos com elementos favoráveis à nossa causa entre os repressores.
Em uma visita da Elô, mãe dos meus filhos Raphael e Clara, agrediram ela. “Solta ela! Não faça isso”, gritei. Acabei punido. A imprensa alternativa divulgou e, com a repercussão, recebi a vista dos atores Eva Wilma e Francisco Milani. Mostrei a eles uma carta que tinha e scrito para Elô. “Me lembra o Carlos Drummond”, o Milani disse. A Eva Wilma levou a carta na calcinha. Com ajuda do Mário Lago, a carta chegou ao Drummond. Ele escreveu uma crônica sobre isso.
Fui preso por atuar contra a ditadura e participar da resistência armada assaltando bancos depois do AI-5. Fazíamos um discurso explicando nossa luta aos funcionários das agências, explicávamos que o seguro cobriria o prejuízo. Era a única maneira de combater. O que aconteceu nesse país, não digo de ouvir falar. Senti na carne, na alma. Testemunhei tudo que relato. Por mais que sejam relatos contundentes, não alcançam a exatidão, porque ninguém consegue descrever.
O governo que está aí defende que sequer aconteceu a ditadura. A situação é desesperadora. Se tivesse acontecido punição aos torturadores, como ocorreu na Argentina e no Uruguai, permitindo que se fizesse justiça, o governo seria outro. A impunidade dos torturadores facilita que o herói dele [Bolsonaro] seja o que me torturou da pior maneira possível [Brilhante Ustra].
Não me arrependo absolutamente de nada. A violência, a truculência, os absurdos que aconteceram comigo poderiam ter acontecido, e aconteceram, com outras pessoas. Outros sofreram mais que eu. Foram assassinados, degolados. Eu sobrevivi. Não tenho ódio, não tenho problemas emocionais que me retirem do meu caminho de serenidade e firmeza. Lamento que a sociedade em que a gente vive ainda permita a barbárie com relativa naturalidade. Permaneci nove anos no cárcere e tenho todas as marcas físicas. As psicológicas eu procuro superar. Com informações da Folha de S. Paulo.