O presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ), João Otávio de Noronha, contrariou suas próprias decisões ao conceder prisão domiciliar a Fabrício Queiroz, ex-assessor do senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ).
Ministros de tribunais superiores e advogados ouvidos pela Folha apontam ao menos três aspectos jurídicos considerados inusuais no despacho do magistrado, que trabalha para ser indicado pelo presidente Jair Bolsonaro a uma vaga no STF (Supremo Tribunal Federal).
O mais gritante, afirmam, é a concessão de liberdade para Márcia Aguiar, a mulher de Queiroz, que estava foragida. De acordo com especialistas ouvidos pela Folha, é muito raro, apesar de não ser proibido, um juiz dar benefícios a quem foge para escapar de uma ordem judicial.
Márcia não se enquadra nas hipóteses previstas no CPP (Código do Processo Penal) para que tivesse a prisão preventiva convertida em domiciliar por decisão do presidente do STJ, afirmou à Folha um promotor de Justiça, especialista em direito criminal.
Tem direito ao benefício, de acordo com a lei, a pessoa que se enquadrar em uma das seguintes situações: maior de 80 anos; extremamente debilitada por motivo de doença grave; imprescindível aos cuidados especiais de criança menor de 6 anos ou com necessidades especiais; gestante; mulher com filho de até 12 anos incompletos; homem que seja o único responsável pelos cuidados do filho de 12 anos incompletos.
O presidente do STJ fundamentou a extensão do benefício a Márcia ao fato de que seria recomendável sua presença em casa para dispensar as atenções necessárias a Queiroz, já que estará privado do contato de outras pessoas durante a prisão domiciliar.
A mudança de posição do ministro sobre os efeitos do novo coronavírus a presos de grupos de risco também surpreendeu especialistas ouvidos.
Desde o início da pandemia, o ministro negou habeas corpus a pelo menos quatro investigados que pediam a soltura por motivos de saúde, como fez a defesa de Queiroz, que obteve decisão diversa à dos demais.
Ao soltar uma pessoa em razão da Covid-19, criticou um delegado da Polícia Federal ouvido pela Folha, o tribunal deveria liberar todos do grupo do risco. Em segundo lugar, acrescentou ele, o Estado tem condições de promover o isolamento sem necessitar conceder prisão domiciliar.
Às vésperas do recesso, a 6ª do STJ negou pedido do ex-governador do Rio de Janeiro Sérgio Cabral para que sua prisão preventiva fosse substituída por prisão domiciliar em virtude da pandemia.
Para o relator do caso, ministro Rogério Schietti, mesmo neste momento de crise sanitária devem ser mantidas as prisões imprescindíveis para a garantia da ordem pública e da ordem econômica, da instrução criminal e da aplicação da lei penal.
“A pandemia do novo coronavírus será sempre levada em conta na análise de pleitos de libertação de presos, mas, ineludivelmente, não é um passe livre para a liberação de todos”, afirmou Schietti.
O terceiro fator que causou estranheza foi a concessão do benefício em decisão sigilosa, o que é raro, uma vez que decisões como esta não costumam envolver dados protegidos dos réus.
O STJ informou à Folha que o sigilo foi decretado no habeas corupus que beneficiou Queiroz por ser o processo “composto por diversos elementos que correm em sigilo na primeira e segunda instâncias”.
Ministros do STF receberam com surpresa a decisão de Noronha, mas apostam que a definição sobre o caso deve ficar mesmo no STJ, sem subir para o Supremo neste primeiro momento.
Isso porque a única possibilidade viável para o MP-RJ (Ministério Público do Rio de Janeiro) reverter a decisão seria a apresentação de recurso ao próprio STJ, uma vez que, em tese, só poderia acionar o STF se o despacho tivesse violado alguma decisão da corte, o que não ocorreu.
O STF (Supremo Tribunal Federal) só deve discutir o tema se a defesa de Queiroz pedir um maior afrouxamento de medidas restritivas impostas por Noronha.
Nesse caso, porém, o Supremo não pode dar uma ordem que seja menos vantajosa que a situação atual do investigado, ou seja, não poderia levá-lo de volta à prisão.
À Folha o advogado Paulo Emílio Catta Preta, defensor de Queiroz, afirmou, nesta sexta-feira (10), que avalia recorrer a corte pedindo a revogação da prisão domiciliar do policial aposentado.
Para Catta Preta, apesar de bem-vinda, a decisão é tímida. “As pessoas pensam que prisão domiciliar é um spa de luxo. Não. É uma prisão”, disse o advogado.
Queiroz foi preso no último dia 18 por ordem do juiz de primeira instância Flávio Itabaiana, titular da 27ª Vara Criminal do RJ, que já quebrou sigilos de Flávio e determinou medidas contra outros investigados.
Na quinta-feira (9), porém, Noronha mandou soltar o policial aposentado sob o argumento de que a situação se enquadra em recomendação do CNJ (Conselho Nacional de Justiça), que sugere o não recolhimento a presídio em face da pandemia do coronavírus. Queiroz deixou o presídio e foi para a prisão domiciliar na noite desta sexta (10).
A medida representou um alívio para o governo. O principal temor de Bolsonaro e seus aliados era o fato de o aumento da pressão psicológica de Queiroz, caso fosse mantida a prisão no complexo penitenciário, o levasse a firmar uma delação premiada.
O grupo que ele integraria é alvo de apurações porque seria responsável pela “rachadinha” no gabinete de Flávio quando era deputado estadual no Rio.
Queiroz, segundo do MP-RJ, seria o responsável por operar o esquema, ou seja, por recolher e administrar os recursos desviados dos vencimentos dos servidores.
Os crimes teriam ocorrido entre abril de 2007 e dezembro de 2018 e envolveriam ao menos 11 ex-assessores que têm parentesco, vizinhança ou amizade com Queiroz.
Neste período, ele teria recebido, via transferências bancárias e depósitos em espécie, mais de R$ 2 milhões. As informações são da Folha de S. Paulo.