A primeira coisa a ser dita sobre as fabulações do presidente Jair Bolsonaro a respeito do seu passado no Exército é que não tem problema nenhum ele nunca ter enfrentado a esquerda armada durante a ditadura militar (1964-1985). Pelo contrário, para um servidor público que naquela época respeitasse a lei e a ordem e fosse contrário às prisões arbitrárias, torturas, assassinatos e desaparecimentos forçados ocorridos no período, ficar dissociado da repressão seria um alívio, quem sabe uma honra. Mas para Bolsonaro parece que se trata de um demérito.
Esse estranho sentimento de inferioridade talvez explique as declarações falsas que Bolsonaro faz, de tempos em tempos, a respeito do seu passado militar. Uma das mais notáveis circula na internet desde o mês passado e voltou a ganhar força nas redes sociais nesta segunda-feira (24).
No ano passado, durante o Fórum Econômico Mundial de Davos, na Suíça, Bolsonaro foi filmado por uma equipe de documentaristas conversando com o ex-vice-presidente dos EUA Al Gore. O democrata, ícone da luta contra o aquecimento global, comentou com Bolsonaro que era amigo do ambientalista, político e escritor Alfredo Sirkis (1950-2020), que veio a falecer em julho passado, em um acidente de carro. Bolsonaro encheu o peito para responder.
“Lá atrás fui inimigo do Sirkis na luta armada”, declarou Bolsonaro. Al Gore se surpreendeu: “Ah, não sabia disso” – e aqui seria o caso de dizer ao norte-americano: “Nem você nem ninguém”. Bolsonaro continuou no seu papel de heroico lutador na ditadura: “Eu sou um capitão do Exército”. Gore pediu desculpas por ter falado “com a pessoa errada”. Humilde, Bolsonaro disse que imagina, pois “a história recém passada dos militares no Brasil foi muito mal contada. A verdade sempre aparece”.
Farsa cronológica
A fraude sobre Bolsonaro ter sido “inimigo do Sirkis na luta armada” foi exposta na própria segunda-feira por vários internautas e jornalistas. Há um problema cronológico capital na construção de Bolsonaro: nascido em 21 de março de 1955, ele entrou no Exército em 8 de março de 1973, aos 18 anos incompletos de idade.
Cinco anos mais velho do que ele, Sirkis participou em 1970, como membro do grupo de esquerda armada VPR (Vanguarda Popular Revolucionária), do sequestro de dois embaixadores estrangeiros, da Alemanha e da Suíça. No ano seguinte, seguiu para um exílio que durou oito anos e meio. Ou seja, quando Sirkis saiu do Brasil, Bolsonaro tinha apenas 16 anos de idade e nem estava no Exército.
Em 1973, enquanto Bolsonaro aprendia a amarrar seu coturno, Sirkis era correspondente do jornal francês Libération no Chile, tendo coberto o golpe militar contra Salvador Allende (1908-1973), em setembro. Após o golpe, Sirkis refugiou-se em Buenos Aires. Ele só retornou ao Brasil em 1979, após a Lei da Anistia, quando a guerrilha de esquerda já inexistia no país. Ou seja, Bolsonaro e Sirkis jamais se cruzaram em todo esse processo e muito menos “lutaram” um contra o outro. As informações são de Rubens Valente, do Portal UOL.