A pobreza e a violência urbana que acometem a população negra desde o Brasil colônia são escancaradas na coleção de contos ‘Olhos D’água’, da premiada escritora mineira Conceição Evaristo. As feridas expostas – e ainda profundas àqueles que carregam as marcas da descendência afro-brasileira – revelaram-se um incômodo aos estudantes de uma turma de nível médio do colégio Vitória Régia (VR), localizado no Cabula, em Salvador. Há um mês, às vésperas do novembro negro, o estudo da obra foi negado pelos adolescentes que, à professora Ana*, justificaram: “Não vamos lidar com uma dor que não é nossa”.
Uma dor que é de Ana, mulher negra de 43 anos, com duas décadas de experiência em salas de aula. Ela foi afastada da turma de 40 alunos 15 dias depois, após pedidos de oito famílias contrárias à obra – desde então, proibida de ser mencionada nas dependências do colégio. Nesta semana, o Sindicato dos Professores (Sinpro-BA) decidiu levar o caso ao Ministério Público da Bahia (MP-BA), após não obter respostas para as notificações enviadas à unidade privada.
A educadora explica que, a princípio, entendeu que, ao afastá-la, o colégio tentou preservar sua integridade física, já que os pais haviam ameaçado invadir suas aulas. O afastamento que acreditava ser momentâneo, contudo, caminha para completar dois meses, contabiliza a professora, que mantém as aulas de história de outras três turmas. “A coordenação me disse que as famílias estavam enraivecidas comigo, algumas chegaram a ir até lá. Me sinto insegura, porque nem sequer sei quem são esses pais. Pretendo registrar um boletim de ocorrência e pedir uma medida protetiva”, pontua.
Ana embarga a voz ao recordar o dia da aula remota, quando foi hostilizada após negar-se a pedir desculpas pelo conteúdo de Evaristo. “Racismo é injúria, mas também quando pessoas querem te colocar em posição de subserviência. Jamais me desculparia, em respeito à obra e à autora. Eles não quiseram sentir ‘a dor do outro’, tudo bem. Mas nada mais é do que ter empatia”.
O ambiente de trabalho se tornou aflitivo para a professora, que há 17 anos leciona no Vitória Régia e em outras três unidades privadas. “É como se a decisão de me afastar fosse um atestado de que estou errada”, lamenta. A educadora não supera o fato de que outros cinco professores trabalharam com o mesmo livro em aparente normalidade. Lembra ainda que a obra foi definida em um concurso da Árvore, programa de incentivo à leitura presente em escolas públicas e privadas de todo o país. Segundo a Árvore, ‘Olhos D’água’ é indicado à faixa etária dos estudantes, que têm entre 16 e 17 anos, e chega a ser cobrado em vestibulares como o da Universidade de São Paulo (USP).
Diretora do Sinpro, Cristina Souto afirma que situações que tocam o racismo são recorrentes em ambientes educacionais. “A gente recebe muitas denúncias, as professoras se sentem intimidadas. Então nossa atuação fica muito em cima do desabafo”, considera. Cristina diz que as instituições se colocam “em posição de comércio”, ou seja, acabam por acatar o desejo dos pais-clientes.
Em reunião com a direção da escola, oito famílias disseram que não admitiriam que a educadora retornasse às aulas, a menos que se retratasse publicamente. Ana não acatou. Em suas redes sociais, chegou a publicar que “não passa pano para racista”, o que motivou novas queixas dos pais e até um afastamento pontual de todas as turmas. “E foi aí que entrou o sindicato. Porque eles se negam a passar os nomes. A busca pelo MP se dá com esse intuito”.
A professora sente que se tornou a “não-grata” da escola, mas não titubeia ao afirmar, em manifesto enviado a outros professores por meio de um aplicativo de mensagem, que é vítima do mesmo racismo que impôs condições precárias à existência de Anastácia – mulher negra escravizada e obrigada a usar uma mordaça que a impedia de falar. “O silêncio contra os nossos corpos continua sendo uma arma. Estão tentando silenciar as professoras negras, escritoras negras”.
Pesquisadora da Diretoria de Políticas Afirmativas e Assuntos Estudantis do Instituto Federal da Bahia (Ifba), a socióloga Marcilene Garcia defende que, de forma geral, a educação pública e privada têm dificuldade de cumprir a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), sobretudo no âmbito das leis 10.639/03 e 11.645/08, pois determina o ensino da história da áfrica, culturas africanas, afro-brasileiras e indígena. Marcilene aponta que, em muitos casos, as instituições privadas se constituem como escolas de qualidade superior. “São lugares onde a diversidade étnico-racial, mesmo em Salvador, ‘cidade África’, é invisibilizada”.
“Os estudantes não sabem que a vida dos negros é difícil, com dor e sofrimento? Por que um livro reconhecido causou incômodo numa escola privada?”, indaga. Quando uma professora leva Conceição Evaristo à sala de aula, na capital mais negra fora do continente africano, completa Marcilene, ela lhes apresenta as “violências racistas” do cotidiano da maioria dos soteropolitanos: “Histórias são de dor porque de dor tem sido a vida do povo negro no Brasil”.
A pesquisadora analisa que há um contexto político favorável à cultura do ódio às minorias. “Com o avanço das ações afirmativas, as pessoas passaram a ver gente negra, ainda que sub-representada, ocupar espaços que nunca ocupou”. Marcilene descreve que é como se Conceição – “uma mulher grande”, negra e de cabelo crespo – não pudesse figurar entre as maiores referências da literatura da contemporaneidade. Não sem causar incômodo.
*Foi usado um nome fictício para manter o nome da professora em sigilo
Em nota, o Vitória Régia disse que o colégio tem 32 anos e está em seu DNA o respeito “às diversidades étnica, cultural, social, religiosa e ao Estatuto da Criança e do Adolescente”. Disse ainda que faz parte da proposta pedagógica, “o estímulo constante aos estudantes acerca das reflexões e ações sobre as diferenças de pensamento, combate ao preconceito e valorização humana. Além disso, a instituição preza sempre pela comunicação ética, clara e objetiva, se colocando sempre aberta ao diálogo com os alunos, famílias, professores e colaboradores em geral”.
Sobre os quesitonametos da saída da professora, a escola disse que “alguns alunos e seus respectivos familiares não se sentiram confortáveis com a obra, por acharem a linguagem inapropriada para a faixa etária, nos termos da Lei nº. 8.069/90”. E que os familiares comunicaram a direção “as suas insatisfações relativas ao vocabulário (palavrões, narrativas reais de violência, etc), o que imediatamente foi comunicado à professora da disciplina para encontrar novo viés para a abordagem da atividade”.
A escola diz ainda que, mesmo sem citar nomes, “a professora levou o assunto em questão ao seu perfil particular no Instagram, no qual levantou a acusação de racismo e de estar sendo silenciada pela instituição, o que jamais ocorreu”. A direção do Vitória Régia diz ainda que a professora, há 17 anos na instituição “continua ministrando aulas em outras três turmas do colégio e recebendo sem ônus os seus honorários”. As informações são do Metro1.