Se estivesse vivo, o comerciante e patriarca de uma das famílias tradicionais do município de Itaberaba, na Chapada Diamantina, Jaime Côrtes Cézar completaria 100 anos no dia 26 de junho de 2015. Para celebrar o centenário, familiares receberam o reconhecimento da atual administração local, homenageiam (in memoriam) e lembram suas características, peculiaridades e detalhes do relacionamento de pai, marido, avô, e, acima de tudo, de um homem honesto, que auxiliou diversas outras famílias de Itaberaba a vencerem a escassez de alimentos e de recursos para sobrevivência. Embora não tenha nascido em Itaberaba, natural de Santa Terezinha, Jaime foi um homem que desempenhou carreira na cidade, sempre respeitado por todos, políticos, nobres e plebeus.
Ter serviços prestados em Itaberaba, ser conhecido com pai presente e que iniciou os onze filhos na matemática, e que exerceu a generosidade são elementos que os tempos modernos não mais permitem que sejamos assim. E foi assim que Jaime Côrtes Cézar, em poucas palavras, formou engenheiros, professores, administradores, técnicos e conquistou o respeito de todos os familiares, amigos e autoridades regionais, seja nos negócios, envolvendo grandes empresas do Estado na venda de fumo ou de jegues, os animais que substituíam os carros para os menos abastados.
Histórico
“Foi um dos homens mais ilustres que Itaberaba já teve, muito embora não tenha nascido aqui. Teve muita importância para o desenvolvimento dessa terra, principalmente com relação à sustentabilidade de várias famílias. Porque ele com um comércio amplo e diversificado, que abastecia parte desta cidade e das cidades circunvizinhas com vendas no atacado e varejo, fez um ‘pool’ de amizades e relacionamentos que não deixou ninguém passar fome. Todas as pessoas que iam a ele, que não tinham dinheiro para comprar seu gênero alimentício, ele fornecia, independente daquela pessoa estar empregada ou não, ele sempre vendeu”, lembra o filho e engenheiro civil, José Ruy Côrtes Cézar.
Ruy segue seu relato sobre seu pai com muita emoção e lembra ainda que muitas vezes determinada pessoa seguia para São Paulo em busca de emprego e deixava a família em Itaberaba ou em sua região de origem e passava um ou dois anos sem mandar um centavo e Jaime mantinha essa família, não lhe deixava faltar até que o pai desta família voltasse para efetuar o pagamento daquela conta. “Foi um homem que realmente deu sustentabilidade para muitas famílias, numa época difícil que foi justamente há 50 anos, que Itaberaba vivia basicamente de agricultura de subsistência, o comércio praticamente não tinha e que as pessoas viviam de dar o dia, mas por conta da seca, que não era tão íngreme quanto agora, mas existia, passava-se muita fome, não existiam programas e políticas públicas sociais do governo, então, se passava muita fome e ele sanou a fome de muita gente aqui em Itaberaba”.
“Lembro de um homem que deu a mão a muita gente, um homem honesto, que sofreu muito por esta honestidade. Porque inclusive, vou contar uma coisa aqui que pouca gente sabe, tinha um gerente de um banco, que fazia muita coisa errada no banco. Ele emprestava dinheiro às pessoas de bem e obrigava outros a avalizar. Meu pai foi aval de muita gente boa que passou o calote nele”, conta Ruy. “Ele financiava muita produção de mamona, ouricuri, fumo ou pó de palha, que ele comprava esses produtos e, às vezes, financiava para o pessoal lá na ponta, ou seja, beneficiava e ajudava na comercialização. Ele era um centro de compra e venda. Antes de ter a BR-242, a estrada antiga era também basicamente no mesmo trajeto, mas não existia o trevo lá por cima, a entrada da cidade era no cemitério, aí tinha uma bifurcação, uma parte ia direto para o centro e a outra parte ia para Avenida Medeiros Neto”, lembra o engenheiro pai de três filhos.
Ele ainda diz que, nesta época, quase todos os comerciantes das cidades vizinhas passavam pelo comércio de Jaime, e que os produtos chegavam primeiro e aí tanto vendia o produto quanto fazia a aquisição de novos. “Isso é bom relatar para que as pessoas que não viveram esta época possam ter conhecimento da importância que foi Jaime Côrtes Cézar para Itaberaba. Tanto que foi reconhecido pelo município com relação ao que ele produziu em benefício dessa terra, foi homenageado, na ocasião me fiz representar em nome da família e agradeci a esta justa homenagem não só a ele, mas a todos os demais comerciantes”, aponta José Ruy, se referindo à comenda entregue recentemente pela Prefeitura Municipal de Itaberaba.
Relacionamento familiar
De acordo com todos os familiares entrevistados pelo Jornal da Chapada, essas são as lembranças mais fortes do patriarca Jaime Côrtes César: honestidade, humildade e respeito ao próximo. Sua filha Eliane Santos Cézar também destaca a homenagem como “uma oportunidade de recordar os momentos bons vividos ao lado do pai e de refletir os aprendizados da época. Minha relação com ele sempre foi muito tranquila e conviver com a primeira geração de filhos do meu pai sempre foi importante, porque a gente aprendeu muito, aumentou o leque de possibilidades, ampliou o universo, eles traziam muitas coisas que estavam vivendo já em outro momento. Então eu acho que essa família reunida teve momentos de muita tensão, mas eu acho que foi muito rica, nossa formação enquanto pessoas”, completa.
Já Nadja Rita Santos Cézar, tem uma lembrança que poucos têm, de uma brincadeira de Jaime e que, talvez, seja uma das que mais marcará o relato sobre a vida do patriarca. “A lembrança dele que mais ficou marcada foi ele brincando com a gente, comigo e com Nadson [irmão, que mora atualmente no Rio de Janeiro] com um lençol branco na cabeça, fazendo como se fosse um fantasma. A gente ria, e, ao mesmo tempo, ficava com medo, mesmo sabendo que era ele. Nós deveríamos ter 5 ou 6 anos”, diz Nadja.
Ainda conforme o relato de Nadja, corroborando com todas as outras falas, Jaime era uma pessoa generosa, que sempre recebia as pessoas na casa dele com muito carinho. “A humildade é o que marcou muito, porque certa vez eu fui grossa com uma pessoa que estava limpando aqui e ele me repreendeu, e a partir daquele momento eu aprendi que com humildade eu ia conseguir galgar muita coisa, não só financeiramente, mas respeito pelas pessoas, pela admiração das pessoas, através da humildade. E a generosidade que ele nunca deixava alguém passar fome, sempre oferecia o que ele tinha em casa era para dividir, a casa podia estar cheia, mas se chegasse mais alguém ele recebia com muito carinho”.
Formada em Turismo e especialista em gastronomia, atualmente Nadja Rita é professora no Senai. “Dou aula para pessoas menos esclarecidas, para pessoas que, às vezes, não sabem nem ler, e eu lembro dele [Jaime], que sempre tirava alguma coisa de aprendizado com essas pessoas, mostrava que a educação de berço não vinha da escola e sim de família. Isso ele sempre mostrou para a gente, através das atitudes”, completa emocionada.
A viúva Marlene Santos Cézar relatou e confirmou os detalhes e a complexidade que envolvia uma família formada por onze filhos de diferentes relacionamentos e também sobre o início da função de comerciante. “Ele começou a negociar novo, saiu da casa dos pais novo para trabalhar no comércio no município de Santa Teresinha e em Elísio Medrado. Ele começou a negociar com fumo, comprava a safra do pessoal dos agricultores, passando para as firmas de charuto que tinham em Castro Alves. Então ele tinha um crédito muito grande no comércio de fumo e trabalhava também com tropa de burro, pegando mercadoria de Castro Alves e levando para Ipirá e voltava de lá com feijão para vender em Castro Alves”.
Marlene afirma que depois disso não demorou muito para Jaime se mudar para Itaberaba, onde criou um comércio na Avenida Medeiros Neto e começou a comprar mercadoria para vender. “Ele mesmo produzia bebidas comuns como jurubeba e vendia. E tinha um comércio de ‘secos e molhados’, como chamava. E um comércio de mamona. Ele comprava mercadoria de Ibiquera, Iguape, Boa Vista do Tupim, Ruy Barbosa, Utinga e Ipirá, os agricultores produziam e vendiam para ele, que vendia para as firmas, para exportação”. Jaime Côrtes foi comerciante, produtor e pecuarista.
Essa primeira parte da vida do patriarca Jaime Côrtes Cézar, quando ele ingressou no comércio e tinha por volta dos 20 anos de idade, foi quando se casou com sua primeira mulher, Edite Côrtes Cézar, e tiveram seis filhos. De acordo com o relato de Marlene, em 1966, Jaime, já viúvo, se casou com ela. “Sempre foi muito batalhador, mas também teve muita decepção em Itaberaba porque perdeu dinheiro no seu comércio e como avalista de vários ricos desta terra”. Teve a fase crítica no Plano Cruzado quando foi obrigado a vender seu estoque de produtos por preços tabelados pelo governo, abaixo do valor real, não tendo condições de repor os estoques, não conseguiu sustentar a pujança do seu comércio. Trabalhou até perto do seu falecimento, aos 80 anos, no dia 6 de agosto de 1995.
União familiar
Foram 11 filhos ao total, no casamento com Edite teve Maria Janildes, mais conhecida por Nildes, em seguida nasceu José Leônio, vulgo Jair, depois José Moacir, Edilúcia, José Ruy e Edna, na ordem. No casamento com Marlene, Jaime teve Eliane, Jarbas, Nadja, Nadson e Jaime Filho. “A relação comigo sempre foi ótima, porque eu encontrei uma família maravilhosa, que me recebeu de braços abertos. Essa homenagem representa reviver as lembranças, as memórias que continuam presentes em nossas vidas, para lembrarmos que é preciso seguir sempre em frente e unidos”, relata Marlene.
As características de Jaime Côrtes Cézar expressas no seu trabalho e na relação familiar mostram que ele não deixou escapar um momento, uma oportunidade de transformar as dificuldades em vitórias. O engenheiro José Ruy, morador de Itaberaba, encabeçou a homenagem e espera manter a memória do pai viva entre os netos e bisnetos, passando os seus ensinamentos de geração para geração.
A relação de pai com os filhos
Os filhos entrevistados pelo Jornal da Chapada destacaram também a relação com o pai e revelam levar ensinamentos do patriarca até os dias de hoje. Para Eliane Santos Cézar, o fato de o pai gostar de leitura foi preponderante para as suas escolhas. “Ele lia jornal, romances, livros e isso é muito forte na gente, nos filhos. A fazenda para ele não era uma fonte de renda, era um investimento, mas ele não vivia da fazenda, ele já tinha o comércio que ele vivenciava mais, ele tirava dali todo o sustento, até para investir na fazenda, ela representava mais o lazer”.
Eliane diz ainda que ajudava no comércio, mas não tinha aquela obrigatoriedade ou rigidez de horário. “Então tinha alguns momentos que a venda estava mais cheia, demandava mais a nossa ajuda, e a gente ia de tardinha, sábado e sexta pela manhã e de noitinha. Tinha uma coisa muito viva, muito presente nele, que era ensinar a fazer conta, da necessidade dele. Então quando eu fui para escola, eu já dominava as operações, já me destacava. Mas isso por causa da venda”.
Já José Ruy diz que na sua época, o pai era mais rígido quanto à ajuda dos filhos na venda. “Eu agradeço muito a ele porque eu comecei a trabalhar, como todos nós começávamos a trabalhar muito cedo, assim que aprendia a fazer conta, então por volta dos cinco a seis anos, todo mundo tinha que ir para trás do balcão ajudar ele. Então começamos a aprender a escrever, ler e fazer conta, para passar um troco, tinha que ir para lá ajudar. E isso muito me engrandece porque eu comecei a trabalhar cedo, perdi uma parte da minha infância porque não pude jogar futebol nem bolas de gude, no período que os outros brincavam eu trabalhava, dava uma fugidinha rápida, mas isso tudo me ajudou na minha formação profissional, na minha formação como homem, eu só tenho a agradecer a ele”.
Presente sempre nas vidas dos filhos, Jaime Côrtes César também foi exemplo para Nadja Rita Santos Cézar, que lembra em relato da data de aniversário do pai. “Foi a primeira coisa que eu lembrei foi que ele faria aniversário, mas eu não fiz as contas, não sabia que seria 100 anos. Tenho certeza que se ele estivesse vivo, como eu tenho certeza que ele estará vendo esta homenagem, ele estaria mostrando para a gente essa humildade e o amor. Eu o admiro porque ele teve vários filhos, duas famílias, e a gente conviveu muito bem com esses outros irmãos, aprendemos a gostar, a respeitar, a amar, como uma só família, não existia divisão de irmão por parte de pai e de mãe. Eu acho que isso sempre foi dele, com sua sabedoria”.
Assim como Eliane, Nadja tem a mesma referência sobre leitura focando no pai. “Meu referencial de gostar de ler sempre foi dele. Tudo ele lia, até bula de remédio, pelo prazer de ler. Então isso de gostar de ler, eu peguei dele. Comecei a ler Júlia e Sabrina por causa dele, lia com tanto prazer e eu comecei a ler e gostar. E na escola ele sempre cobrou bons resultados, era obrigação da gente se dar bem na escola, porque era a única coisa que a gente fazia, apesar de um já começar a trabalhar cedo com ele, não aprendi matemática na escola, foi com ele, aprendi também geografia. Também aprendi muita coisa no comércio, sei fazer conta de cabeça de forma rápida, por causa dele, que sempre exercitava isso com a gente”, ressalta.
Ainda para Nadja, se ela tivesse um filho, acredita que estaria sempre lembrando dele, para passar tudo o que Jaime lhe ensinou. “Eu sinto pena dos netos não terem convivido, os que nasceram agora, como o próprio Samir [filho de Eliane], não terem conhecido ele, porque eu sei que seria uma troca muito boa”. Para José Ruy, a relação com o pai, revela também as ideias futuristas que o patriarca tinha, já que naquela época poucas pessoas se deslocavam para Salvador para estudar, e Jaime teve essa ousadia de colocar os filhos para estudar fora, aqueles filhos que não alcançaram o nível superior foi ou porque não tiveram interesse, ou por ter feito um concurso público, por ter ingressado em uma entidade ou repartição pública, mas quem teve vontade de seguir com os estudos teve sucesso.
O crescimento profissional e pessoal dos filhos de Jaime Côrtes Cézar segue, assim como suas influências e aprendizados, mesmo com todas as dificuldades intrínsecas das gerações posteriores a do patriarca. “Embora a gente viva num país em que as qualidades éticas não são respeitadas, que acho um absurdo esse país ter perdido muito da dignidade, do respeito, eu ainda prezo e passo para meus filhos e para meu neto, essa ideia de responsabilidade e respeito para com os outros, respeito para com o dinheiro dos outros, prezo essa honestidade, faço uso dela e transfiro. Respeito ao dinheiro público à dignidade com o que é dos outros e com aquilo que é seu. Meu pai me ajudou a trabalhar e hoje eu dedico minha vida ao trabalho, e não acho ruim, não me queixo disso. Herdei muita coisa dele, de acreditar nas pessoas e sofro muito por isso assim como ele, mas ciente de que devemos continuar assim”.
Vida social
Jaime teve uma intensa vida social, com bons relacionamentos com os comerciantes locais, regionais e representantes de empresas exportadoras e importadoras de produtos agrícolas. Por insistência da família Cincorá, de quem era muito amigo, foi candidato a vereador e, sem efetuar campanha, almejou a primeira suplência na Câmara de Vereadores de Itaberaba. Além disso, também foi membro de uma das mais respeitadas organizações sociais de irmandades, a Maçonaria.
Jornal da Chapada