Quando as equipes ‘Charlie’ e ‘Delta’ do Batalhão de Operações Especiais (Bope) da Polícia Militar (PM) do Rio de Janeiro entraram com 75 homens no Complexo do Salgueiro, na noite de sábado, 20 de novembro, teve início uma operação que durou mais de 30 horas e deixou até agora dez mortos. A justificativa oficial do Bope cita “a excepcionalidade da ação” para salvaguardar a população e policiais militares que estavam na região.
Na manhã de sábado (20), por volta das 6h20, o sargento Leandro Rumbelsperger da Silva, de 38 anos, do 7º BPM (São Gonçalo) foi atacado a tiros por criminosos durante um patrulhamento em Itaúna, bairro vizinho às Palmeiras e também parte do Complexo do Salgueiro. Leandro morreu no hospital. Em seguida, a PM matou Igor da Costa Coutinho, 24 anos, sem passagens na polícia mas apontado como um dos assassinos do sargento Leandro. No domingo (21), Carmelita Francisca de Oliveira, de 71 anos, foi atingida no braço esquerdo durante uma ação do Bope. Ela passa bem.
Na tarde de quarta-feira, 24 de novembro, foram sepultados cinco dos mortos no Cemitério São Miguel, em São Gonçalo, sob denúncias de amigos e familiares de que eles não morreram “em combate” e que, quase todos, apresentariam sinais de tortura como facadas, dedos cortados e degola. Os laudos do IML registram apenas que as causas das mortes foram em função de tiros.
De acordo com a vice-presidente da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), seccional do Rio de Janeiro, advogada Nadine Borges, as mães entraram no mangue para retirar seus filhos mortos porque a polícia sequer prestou qualquer tipo de socorro às vítimas.
“Além disso, não se preservou o local para perícia, configurando no mínimo fraude processual, além de ser mais uma operação à revelia da decisão do STF na ADPF 635 que proíbe operações policiais na pandemia”, diz Nadine. De acordo com ela, a Comissão de Direitos Humanos da OAB-RJ está prestando assistência aos familiares e seguirá acompanhando a atuação do Ministério Público e da Polícia Civil na fase de inquérito e perícia.
O conjunto de favelas do Complexo do Salgueiro fica no município de São Gonçalo, que tem a segunda maior população fluminense com cerca de 1 milhão de habitantes. O Complexo do Salgueiro, próximo à Baía de Guanabara, é integrado por sete comunidades: Fazenda; Itaoca; Itaúna; Luiz Caçador; Palmeiras; Recanto das Acácias; e Salgueiro. Segundo o IBGE, esta região tem hoje 59.867 habitantes atendidos, de acordo com a Prefeitura, por 7 escolas, 1 creche e 10 postos de saúde.
Nos últimos anos, o Complexo do Salgueiro se tornou, a exemplo do que ocorre com a comunidade do Jacarezinho na cidade do Rio, um dos “quarteis-generais” da facção criminosa Comando Vermelho – a maior do estado. Segundo a Polícia, a apreensão de 60 fuzis no Galeão, em junho de 2017, indicou que as armas seriam levadas para o Complexo do Salgueiro.
Foi num terreno situado na rua Pedro Anunciato da Cruz, na comunidade Palmeiras, que os moradores se mobilizaram para retirar os mortos do mangue. As versões são contraditórias. O Bope afirma que houve horas ininterruptas de combate aberto com os policiais tendo dificuldade de avançar sobre a mata de onde os membros da facção resistiam a tiros e, segundo a polícia, com armamento pesado.
De 75 policiais do Bope acionado na ação, ao menos 8 deles já admitiram terem atirado em combate. Moradores denunciam que alguns dos mortos foram retirados de dentro de casa pelos policiais militares.
Polícia e mídia elegem o inimigo nº 1
Desde as primeiras reportagens sobre a conflagração no Complexo do Salgueiro, um nome passou a ser repetido em todas reportagens de TV, rádio e jornais como sendo o grande responsável pelo desenrolar de acontecimentos que levaram à chacina: Antônio Ilário Ferreira, o Rabicó – que seria o chefe da facção no Complexo do Salgueiro.
De acordo com o porta-voz da PM do Rio, tenente-coronel Ivan Blaz, Rabicó estava preso no Complexo Penitenciário de Gericinó/Bangu. Como continuava comandando o tráfico de dentro da prisão, foi transferido para uma penitenciária federal em Mato Grosso do Sul. Em 2019, contudo, foi colocado em liberdade beneficiado por uma decisão geral do STF.
Um dos questionamentos mais frequentes feitos à PM do Rio é o fato de que, apesar de o conflito armado ter iniciado na noite de sábado, apenas na manhã de segunda-feira (22) é que a Polícia Civil foi informada dos acontecimentos. É bom lembrar que a operação mais letal da história do Rio de Janeiro, com 28 mortos, se deu numa operação da Polícia Civil no Jacarezinho, em maio de 2021 – não por acaso, outro quartel-general do Comando Vermelho – e também aconteceu após a morte de um policial por criminosos do local, logo na entrada da polícia na comunidade.
“A desobediência da restrição das operações policiais pelo STF, neste momento, não pode ser justificada pela morte de um policial. Não consta nem nas instruções normativas que regulam as corporações”, diz o professor Daniel Hirata, do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos (GENI-UFF).
De acordo com Hirata, “as forças policiais do Rio de Janeiro têm de entender que eles não podem agir como criminosos na lógica da vendetta (vingança). E o relatório do Bope que saiu hoje (quarta, 24 de novembro) justifica exatamente dessa maneira a operação – o que é uma loucura”.
O Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos, da UFF, tem uma base de dados sobre as operações policiais de 1989 até o último mês. “Ali constatamos que operações desfechadas em função de mortes de policiais têm quatro vezes mais chance de letalidade do que operações motivadas com mandatos de busca de apreensão com algum respaldo jurídico”, explica Hirata.
Nesta quarta-feira, 24, saiu um novo relatório do GENI-UFF. O professor Hirata destaca um dado específico: “A maior parte das operações policiais acontecem em áreas de controle do Comando Vermelho e as operações que acontecem em áreas de milícias é muito menor. Ainda que a maior parte da área territorial e das populações do Rio estejam sob o controle das milícias. O relatório aponta 11,8% de ações policiais em áreas controladas pela milícia; e 46,9% em territórios dominados pelo Comando Vermelho”. Há um direcionamento das ações, portanto.
Nos territórios da milícia, o mercado mais importante é da proteção e há grupos criminais que se impõem nesse mercado – que é mais lucrativo. A mílicia também lucra com a construção civil ilegal, transportes, água, gás, internet. Não que não haja também venda de narcotráfico – mas este “serviço”, segundo Hirata, é feito pela facção Terceiro Comando Puro (TCP) que, como tudo, paga à milícia para tocar o negócio no varejo.
Políticos se mobilizam
A operação que resultou em 8 mortos, além do sargento e do suspeito de matá-lo, repercutiu no Congresso Nacional. De acordo com o assessor parlamentar Diego Scardone, que atua com a liderança do PSOL na Câmara, “a bancada do PSOL, através da líder do partido, Talíria Petrone, vai apresentar um requerimento de Comissão da Câmara dos Deputados para acompanhar as investigações. Essa é uma ferramenta que possibilita que uma comissão da Câmara faça investigação nos estados”, informa Scardone. Para além disso, ainda nesta semana a bancada – com esforço para ampliar para outros partidos e sociedade civil – promoverá uma reunião com a Comissão de DH de OAB, com a Defensoria Público do RJ, e também com movimentos ligados às favelas e comunidades do Rio Janeiro.
O deputado federal Marcelo Freixo (PSB-RJ) afirma que a crise na segurança pública do Rio de Janeiro é resultado de uma profunda crise política que afundou o estado na corrupção e violência. “Essa política apodrecida fez com que a ordem da lei fosse substituída pela ordem do crime”, diz Freixo.
“Se a instituição policial fosse tratada de forma decente, não estaríamos vendo esses episódios de violência. Temos a polícia que mais mata e mais morre e isso é culpa de uma política corrupta, de um Estado que não tem governo”
Marcelo Freixo
De acordo com Freixo, derrotar essa máfia, “fruto do conluio entre políticos corruptos e o crime organizado, que governa o Rio de Janeiro” é crucial para termos uma nova política de segurança pública que seja eficiente e boa para a sociedade e para os policiais. “Quando fiz a CPI das Milícias em 2008 deixei claro que prender é importante, mas que para vencermos temos que atacar as fontes de poder econômico e político do crime. Isso nenhum governador fez até aqui, porque tem rabo preso, porque o crime ajuda eleger muita gente”, conclui o deputado federal.
Segundo a plataforma ‘Fogo Cruzado’, só em 2021 foram 42 tiroteios no Complexo do Salgueiro, o que dá um tiroteio por semana. De acordo com a plataforma, em 2021 foram registrados 39 mortos e 24 feridos. No fim de novembro, um policial militar morreu. Em agosto de 2021, o adolescente João Vitor de Oliveira Santiago, 17 anos, morreu com tiros de fuzil ao voltar de uma pescaria. O amigo que estava com ele foi ferido mas sobreviveu. Moradores dizem que os tiros partiram da polícia. Em maio de 2020, o menino Pedro Matos Pinto, de 14 anos, foi morto durante uma operação da Polícia Federal com apoio da Core. A casa dele foi invadida por policiais que já chegaram atirando. Três policiais civis foram indiciados.
Depois de quase 33 horas de operação, o Bope só deixou o Complexo do Salgueiro por volta das 19h de segunda-feira (22). Mas, de acordo com a Delegacia de Homicídios de Niterói, São Gonçalo, Itaboraí e Maricá (DHNSGI), a polícia civil só foi acionada na manhã de segunda.
As vítimas
Até a última atualização, dez pessoas morreram — um policial militar, um suspeito de atacá-lo e os oito homens encontrados no manguezal.
Leandro Rumbelsperger da Silva, 40 anos, sargento do 7º BPM (São Gonçalo), morto em Itaúna numa emboscada;
Igor da Costa Coutinho, 24 anos, sem passagens na polícia mas apontado como um dos assassinos do sargento Leandro;
Douglas Vinicius Medeiros da Silva, 27 anos, retirado do mangue. Sem anotações criminais. Foi o primeiro a ser sepultado na terça-feira (23), no Cemitério São Miguel, em São Gonçalo;
Kauã Brenner Gonçalves Miranda, 17 anos, retirado do mangue usando roupa camuflada. A família afirma que ele teve um dedo cortado. Foi sepultado na tarde da terça-feira (23), no Cemitério São Miguel, em São Gonçalo;
David Wilson Oliveira Antunes, 23 anos, retirado do mangue. Sem anotações criminais. Foi sepultado na tarde da terça-feira (23), no Cemitério São Miguel, em São Gonçalo;
Ítalo George Barbosa Gouvea Rossi, o Sombra, 33 anos retirado do mangue. Tinha seis anotações criminais: porte ilegal de arma, homicídio qualificado (2), tráfico de drogas, associação ao tráfico e corrupção ativa e sete registros de ocorrência. Ele foi sepultado na tarde da terça-feira (23), no Cemitério São Miguel, em São Gonçalo;
Carlos Eduardo Curado de Almeida, 31 anos, retirado do mangue. Tinha várias anotações criminais. Era casado e deixa três filhos. Carlos foi sepultado na tarde da terça-feira (23), no Cemitério São Miguel, em São Gonçalo;
Rafael Menezes Alves, 28 anos, retirado do mangue. A irmã de Rafael denuncia que ele tinha marcas de tortura, como uma perfuração de faca no glúteo;
Élio da Silva Araújo, 52 anos, retirado do mangue. A irmã de Élio, Cleonice da Silva Araújo, afirmou ao jornal Extra que o irmão foi degolado.
Jhonatan Klando Pacheco Sodré, 28 anos, retirado do mangue. Ao jornal Extra, a esposa de Jhonatan disse que o marido, com quem era casada há 9 anos, foi retirado de dentro de casa. Ela também denunciou sinais de tortura no corpo do companheiro. “Pegaram eles vivos, mataram na facada. Todos estão sem a parte genital, fora quem está sem olho, sem perna, sem braço”, disse a mulher, que não quis se identificar. Redação de Henri Figueredo para a Revista Fórum.