Foram quase 9 anos ou, nas contas do próprio Paulo Carvalho 3.266 dias à espera da Justiça que chegou no início da noite desta sexta-feira (10). Depois de 10 dias de julgamento, o Tribunal do Júri do Foro Central de Porto Alegre (RS) condenou todos os 4 réus processados no caso da Boate Kiss, casa noturna de Santa Maria (RS) que foi alvo de um incêndio em janeiro de 2013 que matou 242 pessoas e deixou mais de 600 feridas.
“A decisão finalmente nos deu essa paz, esse alívio que tanto buscamos. Podemos agora nos dedicar ao luto e ao descanso que merecemos”, disse Carvalho, diretor jurídico da Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria e pai de Rafael Paulo Nunes de Carvalho, jovem que tinha 32 anos e que morreu no incêndio.
“Foi uma carga enorme, um peso enorme que tiramos desses quase 9 anos, desses 3.266 que esperamos Justiça”, disse, ressaltando que os familiares nunca buscaram vingança, como foi alegado pela defesa dos réus.
“Nós nunca buscamos vingança, sempre procuramos a Justiça. E não cabe a nós, aos nossos filhos, essa pequenez. Porque o nosso amor aos nossos filhos é imensamente maior”, afirmou.
Na decisão, Elissandro Spohr, sócio da boate, foi condenado a 22 anos e seis meses de prisão por homicídio simples com dolo eventual. Pelo mesmo crime, Mauro Hoffmann, também sócio da casa, pegou 19 anos e seis meses de prisão. Vocalista e auxiliar da banda que tocava durante o evento, Marcelo de Jesus e Luciano Bonilha pegaram 18 anos de cadeia pelo crime.
“Nós tínhamos certeza que eles seriam condenado. A dúvida era: quantos anos? E foi uma coisa tão clara, citando diversas questões relacionadas ao dolo – e esse dolo eventual pode até ser pior no sentido de um crime que um dolo premeditado -, citando jovens que saíram da boate e voltaram para salvar amigos e acabaram morrendo também. Os músicos e proprietários que tinham condições de ajudar, de fazer muita coisa, fugiram. Não prestaram socorro”, disse Carvalho à Fórum.
Segundo ele, foi muito difícil rever a tragédia durante o julgamento, ainda mais com a estratégia da defesa dos réuns que, segundo ele, “tentaram se apropriar da nossa dor, mostrando que estavam do nosso lado”.
“Ridículo. Essa indecência toda que fizeram e o juiz percebeu disso. Nada fizeram nesse tempo todo e agora querendo se colocar como vítimas”.
Leitura da sentença
Ao ler a sentença, o juiz Orlando Faccini Neto afirmou que “a culpabilidade dos réus é elevada, mesmo se tratando de dolo eventual. Apesar de eventual, este dolo foi intenso e isso repercutirá na pena”.
“No caso como o presente, é preciso referir que se está diante da morte de 242 pessoas, circunstância que, na órbita do dolo eventual, já encerra imensa gravidade”, declarou ainda.
O magistrado disse também que, apesar das penas altas, os condenados tiveram tempo de usufruir a vida em liberdade, enquanto as vítimas, não. “Esse muito [tempo de vida em liberdade] não lhes foi retirado por acaso (…) São mais de 9 mil anos de vida perdidos. As consequências são gravíssimas para a cidade de Santa Maria”, pontuou.
Após mais de 9 anos, tragédia da Kiss será tema de série; relembre o caso
O incêndio na Boate Kiss, em Santa Maria (RS), que matou 242 pessoas e deixou mais de 600 feridos em janeiro de 2013, será tema de uma minissérie da Netflix. O anúncio foi feito em novembro pela própria plataforma de streaming em uma lista de lançamentos previstos para 2022 e 2023.
A obra audiovisual terá produção da Morena Filmes e direção cineasta Júlia Rezende, sendo baseada no livro “Todo Dia a Mesma Noite”, da jornalista Daniela Arbex. O livro foi lançado em 2018 e traz depoimentos de familiares de vítimas e outras pessoas envolvidas com a tragédia que chocou o país. A previsão é que a série comece a ser gravada em janeiro de 2022, mês em que se completam 9 anos do incêndio.
“É muito importante o lançamento de uma série na Netflix sobre o incêndio na Boate Kiss Para dar mais segurança aos locais em que há falta de segurança. Essas tragédias ocorrem por isso. De tempos em tempos jovens morrem por causa dessa ganância desenfreada, que foi o que aconteceu na Kiss”, disse, em entrevista à Fórum, Paulo Carvalho, que é diretor jurídico da Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria, e é pai de Rafael Paulo Nunes de Carvalho, jovem que tinha 32 anos e que morreu no incêndio
As chamas tiveram início por conta do disparo de fogos de artifício durante o show da banda e, durante a investigação, ao longo desses quase 9 anos, foi constatado que a falta de sinalização, obstrução das saídas e falta de extintores de incêndio, entre outras falhas e omissões, contribuíram para o agravamento da tragédia e o alto número de mortos.
“Foram muitas decepções nesse longo tempo, um absurdo. Esperar 2 anos já é muito, imagina esperar 9. Inúmeras apelações, recursos. Isso tudo causou muitos problemas físicos e psicológicos nos familiares. Pais morreram de desgosto. Não vou dizer que morreram pela injustiça, mas agravou”, disse Paulo Carvalho à Fórum.
“É preciso que sejam responsabilizados pelo dolo que eles cometeram. Todos os 4 [réus]. Não existe crime culposo. Os proprietários fizeram modificações graves: barras que impediram os jovens de sair da boate, fechar o exaustor de ar para consumo maior de bebidas, isso está escrito no processo. Pegaram extintores que estavam lá e colocaram em uma sala porque ‘enfeiavam’ o ambiente. Isso é doloso. Os extintores poderiam salvar vidas. Quem comprou o artefato sabia que não pode usar em ambiente fechado. Assumiu o risco. E o vocalista fugiu. Tinha um microfone na mão, com todas as condições de avisar seguranças e frequentadores “, afirmou ainda o diretor jurídico da Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria.
Memória coletiva
Também em conversa com a Fórum, Daniela Arbex, autora do livro que vai basear a série na Netflix, afirmou que futura obra audiovisual representa “um passo importante na construção da memória coletiva do Brasil”.
“E construir memória é um caminho necessário para a busca da justiça. O livro teve um papel fundamental no registro dessa história e no despertamento da empatia. A adaptação da narrativa para as telas é não só emocionante, como necessária para a compreensão do quanto a jornada pela responsabilização de autores de crimes no país é longa e tortuosa”, diz.
“Meu desejo é que a série nos conscientize sobre a dor do outro e sobre a necessidade de jamais abrirmos mão do exercício permanente da cidadania”, declara ainda a jornalista. Redação da Revista Fórum.